por
Rosana S. Reis Souza [1]
RESUMO
À medida que o conceito de cosmovisão se torna comum, é fácil ser mal compreendido. Alguns a encaram como outra matéria acadêmica a dominar — um exercício mental ou estratégia de “como fazer”. Outros tratam a cosmovisão como se fosse uma arma na guerra cultural, uma ferramenta para o ativismo mais eficaz. Outros ainda, a tratam pouco mais que uma nova palavra de efeito ou um recurso publicitário usado para deslumbrar o público e atrair doadores. O pensamento da genuína cosmovisão é muito mais que estratégia mental ou nova informação nos acontecimentos atuais. Em seu cerne, é um aprofundamento de nosso caráter espiritual e do caráter de nossa vida. Começa com a submissão de nossa mente ao Senhor do universo — a disposição voluntária de sermos ensinados por Ele. A força motriz dos estudos da cosmovisão tem de ser um compromisso a: “Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento…” (Lc 10.27) É por isso que a condição crucial para o crescimento intelectual é o crescimento espiritual, pedindo a Deus a graça de levar “cativo todo entendimento à obediência de Cristo” (2 Co 10.5). Quando defendemos o nosso modelo de universo pessoal, criamos um compromisso, e essa é a raiz mais profunda de uma cosmovisão o compromisso com o entendimento do “realmente real”. A partir desse compromisso flui o caráter e o estilo de vida da pessoa. Porque ele responde a primeira pergunta feita pelo conflito existencial: Qual é a realidade primordial? E esta resposta será a visão de mundo, o caminho que se irá percorrer. Nós cristãos, descobrimos essa cosmovisão apresentada em mais detalhes do que qualquer de nós pode compreender na Bíblia. Ela é de fato uma cosmovisão profundamente gratificante, satisfatória, que é tanto pública como privada, tanto subjetiva como objetiva.
PALAVRAS CHAVE:
Cosmovisões. Teologia Sistemática. Gênesis. Criacionismos. Darwinismo. Mitos
INTRODUÇÃO
Qual é o sentido da vida? O que significa ser humano? Qual é o sentido da história? Fomos criados? Ou uma explosão espontânea deu origem e possibilidade a vida? Essas perguntas não são respondidas como um questionário de internet ou como uma prova escolar. Diariamente, respondemos essas perguntas através das nossas ações, intenções, e do que transborda, do que ocupa nosso coração (Mt 12.34b). Dilthey dizia que “a raiz fundacional da cosmovisão é a própria vida” (apud SIRE, 2009, p. 38). Nem sempre as questões últimas da vida são respondidas de forma cartesiana, pragmática e lógica. Quando comemos, quando conversamos, quando tomamos uma decisão importante, ou quando agimos de má fé, o fazemos com base em determinada cosmovisão. E determinada cosmovisão é a estrutura integradora e interpretativa para julgar a ordem e a desordem de nossos credos; consiste no padrão da direção e do almejo da realidade; representa o conjunto de dobradiças em que giram todos os nossos pensamentos e afazeres cotidianos. São um conjunto de pressupostos cognitivos, afetivos e avaliadores pelo qual, conscientemente ou não, aplicamos ou adequamos todas as coisas com base no que cremos, interpretamos e julgamos como verdade, que efetivamente dá sentido à vida real.
Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise sobre essa questão que forja e contribui no desenvolvimento da humanidade, seja em cultura, filosofia e credo distintos. A análise da cosmovisão nos ajudará a entender por que somos tão parecidos e tão diferentes. Nunca entendemos de fato o cerne desse problema. A análise põe em foco o cenário mais amplo. E pode nos ajudar a trazer à tona porque temos esses problemas ao vivermos uns com os outros. O estudo se concentra na análise das cosmovisões da criação, e passeia pelos relatos seculares e religiosos. O texto apresenta uma abordagem panorâmica sobre cosmovisões cientificas baseadas na teoria evolucionista e big bang, bem como nas defesas criacionistas do design inteligente e na visão bíblica judaica–cristã. Por fim é relevante analisar os mitos da criação das civilizações que coexistiram com o antigo Israel no Oriente Próximo.
Sabemos que uma boa educação na análise de cosmovisão deve ser elemento tão básico do sistema de defesa do cristão, quanto era o escudo nos dias em que o viajante prudente precisava estar preparado para repelir ataques de ladrões brandindo espadas. Em nossos dias, os bandoleiros intelectuais roubam dos jovens a fé, e o fazem servindo-se de argumentos baseados na areia movediça de “o que todo o mundo sabe” e “o modo como pensamos hoje”. Estes jovens precisam encontrar a rocha e saber por que ela é sólida, e por que o mundo prefere a areia movediça.
COSMOVISÃO
O termo cosmovisão é a tradução da palavra alemã Weltanschauung, que significa percepção do mundo ou a capacidade humana de perceber a realidade, intuição. O conceito surgiu no idealismo alemão, e foi usado pela primeira vez por Immanuel Kant (1724-1804). Naugle (apud SIRE, 2009, p. 35-40) menciona que Kant acreditava que o ser humano, para chegar a uma cosmovisão, precisava aplicar-se unicamente à razão e sua autonomia, independente da religião. Ele empregava o termo para se referir “a uma intuição de mundo no sentido de contemplação do mundo dada aos sentidos”. Naugle conclui:
As cosmovisões brotam da totalidade da existência psicológica humana, intelectualmente na cognição da realidade, afetivamente na valorização da vida e volitivamente no exercício ativo da vontade.
Sendo assim cada um de nós tem uma cosmovisão. Esta governa nosso pensamento mesmo quando — ou em especial quando — não estamos percebendo. Alvim Plantiga, (apud PEARCY, 2004, p. 15), observa que a ideia de verdade como uma relação entre as crenças e o mundo, faz parte do nosso equipamento noético [2] nativo. Certas características são mantidas por todas as pessoas, por exemplo, a certeza da morte, a crueldade, bem e mal, certo e errado.
Não há como incorporar todas as características de todas as definições de cosmovisão. Isso é impossível, pois o próprio conceito de cosmovisão é de cosmovisão independente. Cientistas evolucionistas pensam nas cosmovisões como suposições autoevidentes que permitem um conhecimento quase certo da realidade material. Marxistas afirmam que, no final das contas, o comportamento humano é moldado pelas circunstâncias econômicas; os freudianos atribuem tudo a instintos sexuais reprimidos; e os psicólogos comportamentais encaram os seres humanos pela ótica de mecanismos de estímulo-resposta. Da mesma forma uma cosmovisão cristã dependerá do seu compromisso prévio com a realidade objetiva do Deus infinito e pessoal que criou um cosmo inteligível.
Todas as cosmovisões têm pelo menos algum conceito operativo da passagem do tempo e de sua relação tanto com a realidade humana como a não humana. O folclore, o mito e a literatura ao redor do mundo desde o passado remoto até o presente contam estórias que colocam a presente realidade humana no contexto mais amplo do significado cósmico e humano. Eles agem como padrões orientadores e funcionam como partes de cosmovisões. As cosmovisões estão integradas e incorporadas nessas estórias que a operam. Embora poucos desses conjuntos de estórias possam ser facilmente reunidos para formar uma estória-mestre, uma meta-narrativa, elas são, contudo, as estórias pelas quais as sociedades interpretam o universo e a vida à sua volta. O naturalismo com seu padrão big bang; a evolução do cosmo; a formação das galáxias, sóis e planetas; o aparecimento da vida sobre a terra e o seu eventual desaparecimento à medida que o universo envelhece, é uma estória-mestre. O niilismo[3] é uma história mestre, quem sabe um conto cheio de som e fúria narrado por um idiota significando nada, mas uma estória-mestre apesar de tudo. O cristianismo, com seu padrão de criação, queda, redenção e glorificação, é uma narrativa mestre. Essas estórias ou esses conjuntos de pressupostos (suposições que podem ser verdadeiras, verdadeiras em parte ou de todo falsas) que mantemos (de forma consciente ou subconsciente, consistente ou inconsistente) sobre a constituição básica da realidade é o que fornece o fundamento sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos.
A essência da cosmovisão jaz nos recessos internos do eu humano. A cosmovisão envolve a mente, mas é antes de tudo um compromisso, uma questão da alma. Mais que apenas uma questão de inteligência, é uma orientação espiritual. Em resumo, e em termos bíblicos, o coração é o elemento definidor central da pessoa humana. Isto é, a cosmovisão está situada no eu – na câmara operacional central de todo ser humano. É a partir desse coração que todos os pensamentos e ações de uma pessoa procedem. Em sua raiz a cosmovisão é pré-teórica, abaixo da mente consciente. Ela direciona a mente consciente a partir de uma região normalmente não acessada pela mente consciente. Não é que a mente consciente não pode pensar sobre uma cosmovisão e seu caráter pré-teórico. É que normalmente nós não fazemos isso. Antes, pensamos com a nossa cosmovisão e por causa da nossa cosmovisão, não sobre a nossa cosmovisão. Importante destacar que a ontologia deve preceder a epistemologia. Do contrário estaremos baseando toda a nossa cosmovisão na estrutura frágil do ego humano, isto é, na autonomia do ego de cada pessoa ou no sentido de razão da comunidade. O fato é que não podemos evitar assumir algumas respostas para essas perguntas. Adotaremos uma posição ou outra. Recusar a adotar uma cosmovisão explícita acabará sendo por si só uma cosmovisão, ou pelo menos uma posição filosófica. Em suma, fomos pegos. Enquanto vivermos, viveremos a vida examinada ou a vida não examinada.
1.CRIAÇÃO
A noção de criação é usada para nomear o ato e o resultado de criar algo, em resumo, pode-se dizer que a criação de um ser vivo ocorre pela intervenção de um ser já existente ou por ações espontâneas. O criacionismo é a teoria que explica a origem do Universo, da terra e de todos os seres vivos que nela habitam a partir da ação de uma entidade divina. O criacionismo é considerado o oposto do evolucionismo que tem um compromisso com a seleção natural e a teoria do big bang. O artigo trata nessa sessão das vertentes que interferem diretamente na cosmovisão do homem, as teorias cientificas e os criacionismos bíblicos e mitológicos sendo este último, tratado na perspectiva do conceito mítico de algumas civilizações que coexistiram com o antigo Israel.
1.1 Científico
O criacionismo científico oferece uma posição científica sustentável sobre a origem da vida e do universo. Ele não é uma proposta religiosa, pois não trabalha com argumentos religiosos de criação, mas com teorias cientificas. Seu princípio norteador é a liberdade de pensamento e fala guiada por dados coletados usando métodos sistemáticos dirigidos pela razão e evidencias. Existem diversas defesas no campo científico e a espontânea (big bang) pode ser uma das opções mais famosas, mas não é a única. Nesta seção faremos um panorama sobre algumas dessas teorias.
1.2 Teoria da Evolução
A ciência nos seus primórdios era uma ciência natural porque tratava de coisas naturais, mas longe estava de ser naturalista, pois, embora sustentasse a uniformidade das causas naturais, não concebia a Deus e ao homem como presos dentro do mecanismo. Tais cientistas nutriam a convicção, primeiro, de que Deus propiciou conhecimento ao homem – conhecimento de Si próprio e também do universo e da história; e, segundo, de que Deus e o homem não eram partes do mecanismo e poderiam afetar a operação do processo de causa e efeito. Dessa forma, não havia uma situação autônoma no “andar de baixo”. Muitos cientistas eram cristãos. Estudiosos como Copérnico, Kepler, Newton, Boyle, Galileu, Harvey e Ray sentiam-se chamados para seus talentos científicos em louvor a Deus e a serviço Dele; as complexidades não eram temidas e sim saudadas como confirmação da Sua sabedoria e desígnio.
Quando em 1859 Charles Darwin publicou “A origem das espécies por meio da seleção natural”. Trazendo contestações tanto para o meio cristão quanto por não cristãos. A obra é a conclusão dos estudos no jovem Darwin em sua expedição pela ilha de Galápagos, onde percebeu uma certa variação entre as espécies. Ateoria da evolução tem apelado para um processo acéfalo gradual, etapa por etapa, que teria envolvido pequenas mutações selecionadas pela seleção natural, processo este conhecido como conceito da sobrevivência do mais apto. De acordo com Darwin, há uma luta pela sobrevivência na natureza, mas aquele que sobrevive não é necessariamente o mais forte e, sim, o que melhor se adapta às condições do ambiente em que vive. O darwinismo é, de modo implacavelmente naturalista, “explicando” a origem e o desenvolvimento da vida através de causas estritamente naturais, sem lugar para um Deus criador. Para a maioria dos cientistas evolucionistas o cosmo é tudo que é, que foi, que será. Deus não é apenas desnecessário; é irrelevante e até mesmo embaraçoso. O naturalismo[4] reina e no momento reina até mesmo no campo dos estudos religiosos. Não é Deus que é o objeto da investigação. É a crença em Deus.
1.3 Big Bang
A teoria do big bang foi anunciada em 1948 pelo cientista russo naturalizado estadunidense, George Gamow (1904-1968). Até o momento, a explicação mais aceita sobre a origem do universo entre a comunidade cientifica é baseada na teoria da Grande Explosão, em inglês, big ban . Ela apoia-se, em parte, na teoria da relatividade do físico Albert Einstein (1879-1955) e nos estudos dos astrônomos Edwin Hubble (1889-1953) e Milton Humason (1891-1972), os quais demonstraram que o universo não é estático e se encontra em constante expansão.
Um dos maiores contribuintes a causa da teoria do big bang foi Stephen Hawking (2001, p. 78). E sua teoria defende que o universo teria vindo a existência por meio de “leis física estranhas e desconhecidas”. A teoria vive em um empasse, porque de acordo as leis da termodinâmica todos os sistemas encontrados na natureza, naturalmente irão de um estado maior de organização para um estado menor. Não existe lei alguma que demostre que naturalmente, um sistema possa caminhar na direção oposta, ou seja, do desorganizado para o organizado. A ciência desconhece a existência de tais leis. O que Hawking e os demais cosmólogos atuais propõem nada mais é que a definição para milagre: leis físicas estranhas e desconhecidas[5]. Alguns alegam que um dia essas leis serão descobertas e então o big bang deixará de ser uma teoria. Mas enquanto isso não acontecer, a teoria continuará necessitando de um milagre para que um big bang seja a causa da existência do universo. Em geral trabalham com: A Capacidade de Variação das Formas de Vida, A Capacidade de Adaptação das Formas de Vida, A Informação Genética das Formas de Vida.
1.4 Designer Inteligente
A evolução forneceu um design sem designer, na teoria materialista não se encontra nenhuma explicação sequer de antevidência ou planejamento. Ao contrário desta cosmovisão que defende o equilíbrio exato na obra criada e explica a ação criadora de um agente inteligente. Essa revolução é enriquecida pelo reavivamento de uma ideia com um pedigree real: o design, que já habitava no coração dos pais da ciência moderna, como Copérnico, Galileu. Cientistas e não meros devotos leigos, já enxergavam claras evidências [jrn15] de um legislador e arquiteto transcendente.
“De Pandas & Pessoas” de autoria de Davis e Kenyon[jrn16] , publicada em 1968, foi a primeira obra conhecida a usar o termo design inteligente. Sustentando o argumento que estruturas e processos moleculares não poderiam evoluir passo a passo, mas teriam que ser formados “prontos” por uma mente inteligente. O físico químico Charles B. Thaxton em 1984 elevou o termo em seu livro “O mistério da origem da vida”, com o objetivo de mostrar a implausibilidade da origem da vida através de processos puramente naturais, a obra constrói um cenário onde tanto a abiogênese quanto a panspermia seriam eventos estatisticamente impossíveis e que então, somente a hipótese de um criador seria capaz de explicar o fenômeno. Além da origem da vida, aborda como a questão dos fósseis transicionais e da macro evolução.
Os muitos exemplos de soluções que anteciparam problemas mortais antes que surgissem, a evidente genialidade dessas soluções e a necessidade de entrega orquestrada e simultânea de componentes múltiplos plenamente funcionais desde [jrn17] a partida de um determinado sistema representam um desafio enorme à evolução darwiniana. O comprometimento dessa cosmovisão não defende apenas uma evolução cega comprometida com o materialismo. Ao contrário, antevidência que se baseia o design inteligente requer algo mais do que a matéria em movimento. A antevidência é marca registrada de mentes inteligentes.
2. BÍBLICO
Diferente dos mitos de criação das civilizações do Oriente Próximo, o criacionismo bíblico é factual e não temático. Deus não precisou de um motivo, uma batalha, ou um tema que o levasse a criar. O relato bíblico sobre a criação já se inicia com a máxima “- no início criou Deus céus e Terra”.Sem rodeios, de forma didática e inteligível. Porque nunca não foi da intenção do Espírito Santo ensinar e propor uma discussão cientifica, ou fazer uma disputa entre “divindades criadoras” (além Dele não há outro), ao inspirar Moisés a escrever o relato da criação. Antes falou na linguagem popular dos homens para que pudesse se comunicar, se relacionar e ser compreendido. O reformador de Genebra, Calvino, trata isso de “princípio de acomodação” Dessa forma, numa perspectiva cristã, ao revelar ao povo hebreu que Deus criou o universo, o Espírito Santo teria “descido” ao nível do povo, acomodando essa mensagem de fé ao nível de conhecimento do povo, usando as noções científicas da época, inclusive do cosmos.
A cosmovisão bíblica defende que Deus criou o cosmo ex nihilo. Deus é aquele que é; portanto, ele é a fonte de tudo o mais. A realidade externa é o cosmo criado por Deus para operar com a uniformidade de causa e efeito. É importante entender que Deus não fez o universo a partir de si mesmo. Em vez disso, Deus o chamou à existência. Ele surgiu por sua palavra: “Então Deus disse: — Haja luz! E houve luz” (Gn 1.3). Os teólogos assim dizem que Deus “criou” (Gn 1.1) o cosmo ex nihilo — do nada, não de si mesmo ou de algum caos preexistente (pois se fosse de fato “preexistente”, seria tão eterno quanto Deus). O cosmo não foi criado para ser caótico. Isaías o afirma com magnificência:
Porque assim diz o Senhor, que criou os céus — e ele é o único Deus; que formou a terra e a fez — ele a estabeleceu; ele não a criou para ser um caos, mas para ser habitada: “Eu sou o Senhor, e não há outro” (Is 45.18).
O universo é ordenado, e Deus não nos apresenta confusão, mas clareza. A natureza do universo e do caráter de Deus estão, portanto, relacionadas com intimidade. Em parte, pelo menos, o mundo existe desse modo por conta da identidade de Deus. Em última análise, o tema de Gênesis 1,não é como Deus criou, mas que Deus criou, e o Ele fez sem nenhuma matéria preexistente em contraste com as crenças de outras religiões do Oriente Médio[6]. Seu relato, é uma sequência de atos sobrenaturais em um intervalo de tempo, durante o qual, do nada o cosmo e vida terrena foi trazida à existência por meio da intervenção divina (Salmo 8:3-8); pelo atributo de sabedoria de Deus (I Coríntios 1:25), todas as coisas são obra de Suas mãos. Esta menção bíblica conversa com a teoria designer inteligente encontrado na natureza pela biologia e pela química; pelo fato de Deus possuir glória e majestade (Salmo 96:6), o universo reflete essa glória e majestade (Salmo 8:1 e 19:1). Isto explica a enorme beleza encontrada no universo pela astronomia; pelo fato de Deus possuir força e poder (Isaías 40:25-26), todo o universo reflete uma sustentabilidade inigualável (Hebreus 1:3), explicando a enorme estabilidade dos processos complexos e poderosos de troca e produção de energia encontrados pela física, astrofísica, química e biologia, na natureza. Talvez o homem cético jamais chegará ao conhecimento de QUEM, criou todas essas coisas, e se chegar jamais admitirá. Mas isso não significa que ele não pode chegar ao conhecimento científico de que tudo foi criado. Colocando em outras palavras, aceitar que existe um Criador é científico. Aceitar quem é o Criador é religioso. A ciência demonstra que todas as coisas foram criadas. Mas o criacionismo bíblico revela quem é o Criador.
3. MITOS DA CRIAÇÃO
3.1 Conceito
Nosso estudo se propôs a uma breve análise de alguns mitos da criação de algumas culturas antigas que coexistiram com o antigo Israel a saber Egito, Mesopotâmia e Canaã. Nas palavras de Longman III: “ é certo que o relato bíblico da criação não foi escrito para se contrapor a Darwin ou Stephen Hawking, mas foi escrito à luz dos mitos rivais da criação[7]”. E o que seria o mito? O teólogo cubano Justo Gonzalez (apud REINKE, 2019, p. 27), define que o mito é a forma que uma determinada cultura tenta responder as perguntas que surgem na medida que se relaciona com o ambiente em que vive, como o mundo surgiu, de onde vieram? Desde que Cassirer[8] o compreendeu o significado de mito como uma forma extra- cientifica da verdade, o tema tem sido estudado de maneira muito mais séria pelas ciências humanas O mito alerta para uma realidade transcendente, situada além do que pode ser percebido pelos sentidos, impelindo quem o experimenta a saltar do plano existencial para o das essências. Relata um acontecimento originário e configura-se como ferramenta de compreensão da própria história, identidade cultural e tradições fundantes. No conceito ainda cabe dizer que os deuses agem no mito. Eles significam a conexão simbólica da realidade com o transcendente. As explicações míticas desembocam em um culto. O culto nada mais é do que a sistematização do mito explicativo, uma resposta ao sagrado observado.
3.2 EGITO
São várias as cosmogonias egípcias e são encontradas basicamente em textos de magia, particularmente em textos escritos em sarcófagos e nas paredes de pirâmides. Atos de criação também são atribuídos à várias divindades. Na cosmologia básica, as águas primordiais são denominadas Nun, e são dessas águas que surgem a criação. O deus criador, as vezes Atum e outras vezes Atum-Rá emergiu das águas por meio de um ato de autocriação e por meio de si próprio desenvolvendo também outros deuses e deusas: o Sol (Rá), terra (Geb), céu (Nut), ar (Shu), entre outros, representações do cosmo e das forças da natureza. Depois da origem dos deuses, Atum estabeleceu estações e deu vida as plantas e aos animais. Por último, fez nascer o homem. colocando-o no Egito, protegido entre os desertos, onde fez correr o Nilo para abençoar sua criação. Para manter a ordem no mundo criou um reino na terra, tornando-se o primeiro faraó e passando a percorrer diariamente o céu na forma Sol. Um poema que conta parte dessa história está no Texto das Pirâmides de Unas[9]:
No início nada havia, nada existia, Tudo era trevas e escuridão. Tudo estava, latente, inerte. Mas neste abismo cósmico onde a possibilidade de tudo esperava, uma força trazendo dentro de si a eternidade, como se fosse massa disforme, ali permanecia, silente. Louvor a ti, oh Atum! Que vieste a ser enquanto tu mesmo!
3.3 MESOPOTÂMIA
Quando falamos de mesopotâmios, não se trata de um único povo e cultura. E sim de um grande leque de povos e culturas estabelecidas ao logo dos rios Tigre e Eufrates, no Antigo Oriente Próximo. Um complexo de culturas que compartilham características nos permitindo uma análise unificada. Esse complexo também é berço da literatura mais antiga a qual temos conhecimento, procedente da antiga Suméria. O acádio era a língua dos babilônios e assírios. Herdeiros das ideias sumérias, eram contemporâneos dos israelitas durante o A.T, a trajetória do patriarca Abraão começa dentro do território da antiquíssima cidade de Ur dos Caldeus, no extremo sul da Mesopotâmia.
A ligação histórica, é clara entre a Bíblia e os textos mesopotâmicos, especialmente no que se refere aos mitos de origem, como a cosmogonia e o dilúvio. A mais famosa narrativa cosmogônica da Mesopotâmia está registrada no Enuma Elish “quando lá no alto”, em babilônico, e se trata de uma poesia gravada em tabuinhas de argila, datada por volta do séc. XII a.C. O texto começa com uma teogamia, ou seja, nascimento e gerações de deuses e deusas. As divindades mais antigas foram Tiamate e Apsu, as águas do mar e debaixo da terra. Deles nasceram deuses-casais. Os deuses começaram a agir de forma desordenada e Apsu resolveu destruí-los, porém Ea um dos deuses subordinados se antecipou e o matou enquanto dormia, gerando em Marduk em seguida. Tiamat também resolveu destruir os deuses, enviando Kingu e sua legião de monstros. Anshar convidou entre outros deuses Marduk que comandou a rebelião matando Tiamat, dividindo o seu corpo em duas partes criando com elas céus e terra. Ea ordenou que criasse a humanidade a partir do sangue de Kingu .O objetivo da criação dos homens era que eles se ocupassem do fardo do trabalho no lugar dos deuses, os quais finalmente poderia descansar.
3.4 CANAÃ
Nenhum outro grupo cultural teve tanto contato com os hebreus quanto os cananeus. A relação é tão intima a ponto de a historiografia contemporânea tender a considerar Israel e Judá reinos oriundos dos cananeus, e não invasores tardios de Canaã. A hipótese é levantada pela proximidade entre as culturas, que não é negada pelos textos bíblicos, e é confirmada pela arqueologia. Assim como na cultura mesopotâmia, em toda Canaã havia uma pluralidade de ideias, concepções e intercâmbios, que se configuravam de maneiras diversas nas cidades independentes cananeias. As divindades cananeias, segundo os escritos de Ugarit, eram bem estruturadas e organizadas em um panteão.
El era o deus supremo e criador original, ao seu lado aparecia a deusa-esposa Asera. Logo depois do casal supremo vinham os deuses Baal e sua esposa-irmã Anat. Baal não foi o criador original, mas foi ele quem venceu Yam, o dragão do caos, a força caótica do mar anterior a ordem do cosmos para que El agisse. Mesmo depois de concluída a obra criadora, o caos continuou a ameaçar o mundo ordenado pela infertilidade das mulheres, pela falta de chuvas e deserto. Baal travou com Mot uma batalha factual pela manutenção da vida e foi morto. Anat se vinga e mata Mot, causando a ressurreição de Baal retornando a fertilidade e a vida. Em um ciclo eterno, que se repetia todos os anos, o deus revivia o feito cosmogônico. Anualmente cessavam as atividades agrícolas com a estiagem e retornavam quando as chuvas voltavam. Com esse mito, estavam explicados os ciclos e as estações de chuva que moviam a economia cananeia.
CONCLUSÃO
Estudar cosmovisão faz compreender de qual história fazemos parte. Vivemos em uma encruzilhada e uma guerra de cosmovisões. O mundo ocidental é pautado numa cosmovisão humanista que destrona Deus da natureza e que coloca o homem no nível dos ratos — o humanismo destitui a peculiaridade e particularidade do homem como imago dei e coloca-o para ser analisado in vitro, como objeto de estudo dentro das categorias meramente racionais. Nossas igrejas e muitas das nossas práticas cristãs foram moldadas por essa cosmovisão que leva à morte. A cosmovisão bíblica é a resposta que nos leva a entender que fazemos parte da missão de Deus na grande narrativa bíblica. Existem formas de trazer luz para os caminhos a partir dos quais fazemos escolhas. E seja qual for a escolha feita, se não formos hipócritas, comprometemo-nos a viver com base nela. Como indica a própria definição de cosmovisão: “vivemos, nos movemos e existimos” de acordo com a cosmovisão que mantemos, não a que meramente confessamos. A honestidade destemida deveria caracterizar nossa autoanálise — onde estamos agora — e nossa busca da verdade. “Todo homem, por natureza quer saber”, disse Aristóteles. E há pelo menos uma cosmovisão que mostra como isso é possível, uma cosmovisão que pode ser tão intima a cada um de nós como universal a todos nós. Descobrimos essa cosmovisão apresentada em mais detalhes do que qualquer de nós pode compreender na Bíblia. Ela é de fato uma cosmovisão profundamente gratificante, satisfatória, que é tanto pública como privada, tanto subjetiva como objetiva.
A cosmovisão sendo um compromisso pessoal, uni modo de vida, uma fonte de significado supremo e, é claro que o cristianismo é tudo isso. Mas estamos preparados para dizer que é verdadeiro ou apenas guardá-la em segurança no mesmo recôndito interno que ela surge? Estamos preparados para afirmar que o criacionismo bíblico é a verdade sobre a realidade total, e quebrar a dicotomia ciência x religião que escraviza o olhar cristão, dando margem para declarações materialistas que nos julgam estúpidos leitores de fábulas? Quando afirmamos que o criacionismo bíblico é a verdade sobre a realidade total significa dizer que é uma cosmovisão que envolve tudo, tanto vida quanto morte. Para defender a cosmovisão cristã em nossa geração, temos de aprender a desafiar essa “igreja estabelecida”. E o primeiro passo crucial é demonstrar precisamente que essa “ciência zelosa”, que de forma apologética tem se esforçado parar plantar nos corações que Deus é um delírio, também é uma forma de religião, ou seja, um sistema de crenças ou filosofia pessoal. Muito do que é acondicionado e apresentado sob rótulo de ciência não é ciência de verdade, mas materialismo filosófico.
Concluindo, em Romanos 12.1-3, Paulo exorta que devemos decidir, de forma racional, oferecer nosso corpo como sacrifício agradável a Deus na maneira como vivemos. Como cristãos, somos transformados pela renovação da mente. Quem faz isso é o Espírito Santo. Essa renovação nos dá a chance de avaliar o presente momento com a ética e cosmovisão do mundo por vir. O que significa viver uma mente renovada, ou uma cosmovisão nos moldes de Deus? A resposta está na busca relacional com ele. Desta forma, podemos viver a plena confiança e renovação à semelhança de Deus para viver no mundo. A cosmovisão bíblica transforma outras cosmovisões, pois é a cosmovisão da vida humana verdadeira, da visão de mundo verdadeira, da verdadeira doação em favor dos outros, assim como Deus o fez.
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[1] Bacharelanda em Teologia com ênfase em Missiologia pelo Seminário Teológico Betel Brasileiro.
[2]Adjetivo; pertencente ao âmbito do intelecto, da mente. Que se define pela utilização da razão; racional. Caracterizado pela atividade intelectual, pelo uso do intelecto.[Filosofia] Referente à noese, ao ato de conhecer ou de pensar alguma coisa, proposta na fenomenologia pelo filósofo alemão Husserl (1859-1938).Etimologia (origem da palavra noético). Do grego noetikós.ê-on, intelectual.
[3] Niilismo é uma doutrina filosófica que indica pessimismo e ceticismo extremos perante a realidade ou valores humanos. Num sentido amplo, o niilismo consiste numa atitude de negação ou descrença absoluta em relação a princípios, sejam eles religiosos, morais, políticos ou sociais.
[4] Naturalismo, substantivo masculino. 1.condição, estado do que é produzido pela natureza. FILOSOFIA: doutrina que, negando a existência de esferas transcendentes ou metafísicas, integra as realidades anímicas, espirituais ou forças criadoras no interior da natureza, concebendo-as redutíveis ou explicáveis nos termos das leis e fenômenos do mundo.
[5] ADAUTO, Lourenço, 2013, p. 19.
[6] DILLARD, Raymond, LONGMAN III, Introdução ao Antigo Testamento, p. 52
[7] Longman III, Tremper, Como ler Gênesis, p. 82.
[8] Ernst Cassirer (1874- 1945) Filósofo alemão de origem judaica. Importante representante da tradição neokantiana de Hamburgo. Desenvolveu uma filosofia da cultura como uma teoria dos símbolos, baseada Fenomenologia do conhecimento. Autor de diversas obras entre eles Linguagem Mito e Religião ( 1925) e Filosofia das formas simbólicas (1923).
[9] Os Textos da Pirâmide de Unas. Os textos foram descobertos em 1881 por Gaston Maspero e compilados por alguns estudiosos como Samuel AB Mercer, Kurt Heinrich Sethe, Sleepers Louis, entre outros. A compilação feita por Samuel Mercer está disponível no site www.sacred-texts.com.